28/10/2009

Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania

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A expressão cidadania está hoje por toda parte, apropriada por todo mundo, evidentemente com sentidos e intenções diferentes. Se isso é positivo, num certo sentido, porque indica que a expressão ganhou espaço na sociedade, por outro lado, face à velocidade e voracidade das várias apropriações dessa noção, nos coloca a necessidade de precisar e delimitar o seu significado: o que entendemos por cidadania, o que queremos entender por isso. A minha apresentação será uma tentativa nessa direção, um esforço de marcar o terreno, de indicar alguns parâmetros do campo teórico e político onde essa noção emerge, especialmente a partir da década de 1980.

Nesse esforço - preliminar, como vocês verão - vou procurar enfatizar, de um lado, o que acho que é o seu significado original (falo da sua origem contemporânea); de outro lado, aquilo que considero seja inovador, aquilo que pode justificar o falar-se hoje de uma nova cidadania. Acho que é possível marcar, desde logo, esses dois sentidos da cidadania destacando o seu caráter de estratégia política, o fato de que ela expressa e responde hoje a um conjunto de interesses, desejos e aspirações de uma parte sem dúvida significativa da sociedade, mas que certamente não se confunde com toda a sociedade. Nesse sentido, evidentemente as apropriações e a crescente banalização desse termo não só abrigam projetos diferentes no interior da sociedade, mas também certamente tentativas de esvaziamento do seu sentido original e inovador. Há uma disputa histórica pela fixação do seu significativo e, portanto, de seus limites.

Acho que há duas dimensões que presidem a emergência dessa nova noção de cidadania e que devem ser lembradas para marcar o seu terreno próprio.

Em primeiro lugar, o fato de que ela deriva e portanto está intrinsecamente ligada à experiência concreta dos movimentos sociais, tanto os de tipo urbano - e aqui é interessante anotar como cidadania se entrelaça com o acesso à cidade - quanto os movimentos de mulheres, negros, homossexuais, ecológicos etc. Na organização desses movimentos sociais, a luta por direitos - tanto o direito à igualdade como o direito à diferença - constituiu a base fundamental para a emergência de uma nova noção de cidadania.

Em segundo lugar, o fato de que, a essa experiência concreta, se agregou cumulativamente uma ênfase mais ampla na construção da democracia, porém, mais do que isso, na sua extensão e no seu aprofundamento. Nesse sentido, a nova noção de cidadania expressa o novo estatuto teórico e político que assumiu a questão da democracia em todo o mundo, especialmente a partir da crise do socialismo real.

Como conseqüência dessas duas dimensões, eu destacaria um terceiro elemento que considero fundamental nessa noção do cidadania: o e o fato de que ela organiza uma estratégia de construção democrática, de transformação social, que afirma um nexo constitutivo entre as dimensões da cultura e da política. Incorporando características da sociedade contemporânea, como o papel das subjetividades, a emergência de sujeitos sociais de novo tipo e de direitos de novo tipo, a ampliação do espaço da política, essa é uma estratégia que reconhece e enfatiza o caráter intrínseco e constitutivo da transformação cultural para a construção democrática.

A questão da cultura. democrática assume um caráter crucial no Brasil e na América Latina como um todo. Esta é uma sociedade na qual a desigualdade econômica, a miséria, a fome são os aspectos mais visíveis de um ordenamento social presidido pela organização hierárquica e desigual do conjunto das relações sociais: o que podemos chamar autoritarismo social.

Profundamente enraizado na cultura brasileira e baseado predominantemente em critérios de classe, raça e gênero, esse autoritarismo social se expressa num sistema de classificações que estabelece diferentes categorias de pessoas, dispostas nos seus respectivos lugares na sociedade.

Essa noção de lugares sociais constitui um código estrito, que a casa e a rua, a sociedade e o Estado. É visível no nosso cotidiano até fisicamente: é o elevador de serviço, a cozinha que é o lugar da mulher, cada macaco no seu galho etc. etc.

Esse autoritarismo engendra formas de sociabilidade e uma cultura autoritária de exclusão que subjaz ao conjunto das práticas sociais e reproduz a desigualdade nas relações sociais em todos os seus níveis. Nesse sentido, sua eliminação constitui um desafio fundamental para a efetiva democratização da sociedade. A consideração dessa dimensão implica desde logo uma redefinição daquilo que é normalmente visto como o terreno da política e das relações de poder a serem transformadas. (1)

E, fundamentalmente, significa uma ampliação e aprofundamento da concepção de democracia, de modo a incluir o conjunto das práticas sociais e culturais, uma concepção de democracia que transcende o nível institucional formal e se debruça sobre o conjunto das relações sociais permeadas pelo autoritarismo social e não apenas pela exclusão política no sentido estrito. Nossa referência aqui, portanto, é, mais do que um regime político democrático, uma sociedade democrática. (2)

É um pouco constrangedor e desconfortável falar disso atualmente, num contexto onde, como agravamento as desigualdades econômicas, a fome, a miséria, o autoritarismo social se transformou em apartheid social em violência, em genocídio. No entanto, talvez seja exatamente mais importante ainda, num momento em que a gravidade da crise econômica acaba determinando o que considero um certo "reducionismo econômico" na análise da questão da democracia, enfatizar essa dimensão cultural da cidadania. Mesmo porque, de outro lado, me parece evidente o vínculo entre esse autoritarismo social enquanto matriz histórica de ordenamento da nossa sociedade e o quadro de miséria a que chegamos hoje, sem falar da privatização desvairada do Estado e dos recursos públicos a que assistimos hoje como componente da crise política que vivemos.


EVELINA DAGNINO

(Do livro: Anos 90 - Política e sociedade no Brasil,

org. Evelina Dagnino, Ed. Brasiliense,1994, pág. 103-115)